Virada no Antônio Prata depois da Covid
Rio Grande do Sul e a fake news do ponto de ônibus escolar
Antônio Prata frequentemente diz que a crônica é aquela parte do jornal destinada a trazer certo alívio ao leitor, que está sendo bombardeado por notícias ruins e informações mais sérias. Contudo, durante a pandemia, ele mencionava não aguentar mais escrever sobre o desgoverno de Bolsonaro, embora não conseguisse escrever sobre outra coisa, pois era o que mais o afetava naquele momento.
Ao me questionar se deveria escrever sobre a tragédia no Rio Grande do Sul, lembrava-me desse comentário dele. Parece que não há como escrever sobre outra coisa. Entretanto, tantas pessoas já falaram sobre isso, e de forma muito mais eloquente do que eu poderia, que decidi deixar de lado.
Até que algo aconteceu, algo que, assim como a revolta de Antônio Prata com Bolsonaro, me revoltou a ponto de querer expressar em palavras.
Minha filha, sensibilizada do seu jeito pela tragédia, decidiu doar alguns brinquedos e roupas. Naturalmente, eu a incentivei e ajudei a separar as coisas em bom estado, afinal, ninguém quer brinquedos quebrados ou roupas desgastadas.
Mais tarde, enquanto esperávamos o ônibus escolar com outras mães e crianças, ela perguntou a uma amiga se também faria doações para o Rio Grande do Sul. A resposta da mulher atingiu-me profundamente e me trouxe de volta à realidade além da minha bolha.
Ela disse que não faria doações porque o "nosso querido presidente estava exigindo que todas as doações tivessem nota fiscal, caso contrário não seriam aceitas."
Uma raiva intensa me tomou naquele momento. Tentei manter a calma ao máximo enquanto explicava que aquilo era mentira, e que pessoas que propagam esse tipo de fake news são verdadeiramente mal-intencionadas, pois impedem as pessoas de se ajudarem. Ela concordou, mas não creio que tenha acreditado em mim. Começou a generalizar, dizendo que há muitas pessoas más no mundo.
Minha raiva foi cedendo lugar à tristeza e uma sensação de impotência diante da amplitude que essas mentiras alcançam.
Depois de me despedir da minha filha, voltei para casa, pesquisei verificações de fatos que revelavam a falsidade daquela informação e enviei para aquela mãe, ainda na esperança de abrir seus olhos e seu coração.
Eu não acho que todas as pessoas devem fazer doações, ninguém é obrigado a nada, e tem gente que nem está em condições de fazer isso. O fato é que a partir do momento em que seu comportamento é determinado por uma mentira, já não é mais uma questão de escolha, mas de desinformação e manipulação.
Conheço essa mulher; sei que ela não se interessa muito por política, é evangélica, e seu círculo social é composto por pessoas conservadoras. Seria esperado ouvir algo assim vindo dela. Contudo, ver alguém acreditando em fake news bem diante dos meus olhos, juntamente com tantas crianças a caminho da escola, foi extremamente chocante para mim. Não apenas pela fake news em si, mas por testemunhar o impacto concreto que ela teve. Aquela mãe não faria doações, não consideraria ajudar outros seres humanos em profundo sofrimento, não porque é má, mas porque pessoas más a fizeram acreditar numa mentira, criada para prejudicar os que sofrem em nome de uma eleição ou para favorecer um candidato específico.
Quis dividir esse relato com vocês porque a crueldade disso mexeu tanto comigo que agora entendo a necessidade de Prata em encher as páginas do jornal com sua revolta, raiva, tristeza e perplexidade. É que nos sentimos tão impotentes que só nos resta escrever.
Depósito de Dicas
NEWSLETTERS
Virginia Valbuza é alguém que escreveu de forma muito mais eloquente do que eu sobre a tragédia do Rio Grande do Sul (e ainda cita a news da Taize, que eu também iria indicar, e dicas de como fazer doações):
FILMES E SÉRIES
Assisti “Zona de Interesse” no último fim de semana (porque eu sou esse ser humano que na tragédia assiste drama e não comédia)e acho que tem tudo a ver com o que a falta de reflexão, de questionamento, o fechar os olhos para o que está ao seu redor pode fazer com as pessoas.
LIVROS
THE MOLECULE OF MORE - Daniel Lieberman
A recomendação de leitura da vez é pra quem gosta de neurociências ou de entender o comportamento humano. Esse livro fala sobre a dopamina e como ela influencia nossas escolhas, principalmente a motivação, vícios e hábitos. Já tem edição em português tbm.
Tem post no meu diário de leitura.
cada fake news que chega a mim por alguém da família ou uma pessoa conhecida me corrói um pouco. é algo que vai na contramão de valores que nutro desde muito cedo, que maltrata minha identidade jornalística e que corrompe essa ilusão (?) de que a gente vai conseguir melhorar as coisas, rs
Também não sei o que falar sobre o assunto, parece que nada do que eu falar além de "por favor, doem" e "essa situação é uma merda" vai explicar melhor. *Adicionei o livro na minha lista, gosto muito desse assunto.