Todo bairro tem um doidinho, né? Aquele personagem excêntrico que possivelmente tem uma doença mental não tratada e que toda vizinhança conhece e acolhe. No meu, não tem um, tem dois.
Uma mulher que carrega várias caixas e se instala em várias partes da cidade como se fosse uma nômade, meio caçadora-coletora, meio Gandalf contra o Balrog, porque às vezes ela luta contra uns monstros que só ela enxerga e fica gritando pela rua. Já estamos acostumados.
O outro é um senhor que provavelmente tem algum tipo de demência e fica xingando todo mundo, mandando "pra aquele lugar" crianças, jovens e adultos. Todos já estão acostumados com ele também, e ninguém leva a sério seus xingamentos.
Nenhum dos dois é muito sociável; dificilmente alguém consegue conversar com eles, e para oferecer ajuda só sendo escondido ou quando estão de bom humor.
No entanto, um dia desses, me surpreendi com a imagem dos dois sentados um ao lado do outro, conversando amenidades, como velhos amigos. Coisa que nunca tinha visto eles fazerem com ninguém, sempre foram solitários, mas acho que era só porque nunca haviam se cruzado.
Sabe quando você encontra alguém muito parecido com você e o santo bate? Certeza que foi isso que aconteceu com eles. Afinal, ambos habitam a mesma realidade paralela à nossa. E é tão bom quando conhecemos outro doido igual a gente.
Claudia Feitosa fala sobre isso em seu livro Eu Controlo Como Me Sinto, que indico no fim desse texto (spoiler!). Basicamente, ela explica que, quando nos sentimos solitários, também nos sentimos não pertencentes. Como quando temos uma alucinação, que é uma percepção de algo que ninguém mais tem, como ouvir vozes ou ver algo que mais ninguém enxerga. Portanto, ao compartilhar nossa realidade, sentimos que pertencemos e que não estamos sozinhos.
No caso dos meus amigos de bairro, eles estavam compartilhando realidades dentro de suas alucinações, e foi onde eles se encontraram e se identificaram, pois se sentem pertencentes ao mesmo lugar. Imagino que isso os tenha feito bem de alguma forma. Daí a importância dos CAPS e centros de convivência. Encontrar pessoas parecidas com você faz com que você não se sinta marginalizado numa sociedade que não compartilha do seu modo de ver o mundo.
Confesso que tenho um pouco de inveja da amizade deles, pois sempre quis me comunicar com eles (com ela, na verdade), mas nunca consegui. Acho que, de alguma forma, eu também compartilho dessa realidade, pois meus pensamentos intrusivos estão mais próximos de uma alucinação do que do contexto da maior parte da população.
É por isso que escrevo, para tentar compartilhar minhas percepções e me sentir pertencente de algum jeito. Quando vocês me leem e me compreendem, eu me sinto menos sozinha no meu mundo.
De acordo com Rosa Montero, essa é a motivação para a maioria dos autores escreverem suas obras: a necessidade de se sentirem compreendidos, compartilhando essa parte estranha de suas personalidades, cheia de personagens e histórias. São muitas vidas dentro de um único ser humano, e é necessário dividir isso com os outros para se sentir pertencente.
Ainda no livro de Claudia, ela afirma que “o não pertencimento pode gerar um pensamento suicida ou uma inspiração criativa”. Às vezes, uma percepção que só você tem pode se tornar algo genial, que ninguém havia se dado conta antes. Por isso a arte faz tão bem aos “loucos” — ou por isso que todo artista é meio doido, ou vice-versa.
Eu fico feliz que esses dois companheiros de viagem tenham se encontrado, mas acho que, por enquanto, eu não quero me juntar a eles, não. Na verdade, tenho até medo disso. Prefiro continuar aqui, dividindo minhas neuroses com vocês e compartilhando meus pontos de vista por meio da palavra escrita. Ela me salva todos os dias, e vocês me salvam sempre que chegam ao final de um texto como esse.
São vocês, meus companheiros de viagem, que fazem com que eu me sinta pertencente a essa realidade sem precisar gritar com Balrogs ou xingar pessoas na rua. Se bem que não estou muito distante de realmente fazer isso. Mas nenhum de nós está. E se no seu bairro não tem um doidinho excêntrico, sinto informar, mas…
Depósito de Dicas
NEWSLETTERS
Nada melhor para indicar dessa vez do que a newsletter dessa “loca” de quem eu sou fã. Bruna Maia é sensacional!
FILMES E SÉRIES
Taí um filme muito doido. Eu recomendo demais, apesar de ser bem bizarro, as mulheres irão se identificar, eu pelo menos me senti representada na hora que ela não consegue levantar do sofá com a perna travada, isso sempre acontece comigo…
LIVROS
EU CONTROLO COMO ME SINTO - Claudia Feitosa-Santana
Um livro para os doidinhos entenderem melhor como funciona o cérebro e os sentimentos. Quando eu digo doidinho, é a você mesmo que estou me referindo. Mais detalhes sobre a obra no meu diário de leitura.
Obrigada por ler Depósito de neuroses!
A inscrição é de graça, e sempre será, mas se você quiser pagar eu vou ficar doida de felicidade!
todo mundo precisa de alguém para compartilhar um pedacinho da vida que seja...
Eu cresci onde tinha 3 doidinhos, lembro até hoje, Dezessete, Alemão e Dona Maria, a única que era mais violenta e reagia às provocações das crianças
Na verdade seriam 4 doidos se contar meu avô, que ficou assim depois de bater a cabeça num acidente de carro. Ficava o dia todo na porta xingando as pessoas na rua
Hoje acho que os doidos da rua somos eu e o meu cachorro